Escuridão, paixão e bondade
Existe uma grande divisão neste mundo que podemos denominar “coisas vivas” e “coisas mortas”, e tudo se resume praticamente a uma combinação dessas duas “coisas” ou energias. Entre as coisas sem vida, podemos citar o teclado do computador que agora uso, o par de meias que esquenta meus pés, meus óculos, etc., pois nada disso apresenta consciência. Todos os seres vivos, como, por exemplo, uma simples flor, um animal, um ser humano, etc., são combinações destas duas energias, a material e a espiritual. Somente quando a energia espiritual habita um corpo específico é que este pode apresentar algum grau de consciência, tais como uma flor viva, um animal vivo, um homem vivo. Por outro lado, quando não apresentam mais vida, isso indica claramente que o corpo não serve mais como morada da energia espiritual. Com isso, podemos observar que nós não somos meros corpos materiais, mas, sim, a consciência, ou a energia viva que agora os habita; almas espirituais. E, enquanto almas, somos seres de luz capazes de irradiar bondade inesgotável, mas, quando mergulhamos neste mundo, ganhamos um revestimento corpóreo, e ficamos sujeitos à influência da energia material, nossa luz se manifestando parcialmente. Tudo depende, portanto, da consciência que imprimimos em nossas ações. A própria energia material, por sua vez, irá reagir à sua maneira, e irá exercer sua influência sobre nós de três diferentes modos: o modo da bondade (uma influência mais branda), o modo da paixão (uma influência intermediária) e o modo da escuridão (uma influência mais densa). É sobre isto que este livro trata, sobretudo enfatizando a importância de escolhermos a frequência da bondade para dirigir nossas ações e pensamentos, até porque a bondade é a própria energia original da alma, uma característica intrínseca a ela, e não uma imposição artificial ou algo que possa ser obtido de fora para dentro. Fazer da bondade o estilo de nossa vida significa, portanto, resgatar a essência da nossa própria natureza.
Portanto, embora tenhamos sempre a impressão de que estamos agindo por vontade própria e que somos os senhores de nós mesmos, devemos considerar que, ao nos envolvermos em alguma atividade física, mental ou intelectual, há uma tríade de forças da natureza operando interna e externamente sobre nós. Essas três forças são chamadas de gunas: escuridão (tamas), paixão (rajas) e bondade (sattva): “A natureza material consiste em três modos – bondade, paixão e escuridão. Ao entrar em contato com a natureza a entidade viva eterna se condiciona a esses modos” (Gītā 14.5).
Literalmente falando, guna significa “corda” ou “cordão”. Trançados entre si de diferentes maneiras e em diversas proporções, esses três cordões se agregam em infinitas combinações para impor diferentes estados de espírito, ou modos, a todos os seres.
Como efeitos do modo da bondade, podemos destacar a presença da luz, da benevolência, da pureza, do desapego ou da amabilidade de um indivíduo ou de um ambiente.
As evidências ligadas ao modo da paixão são claramente presenciadas quando impulsos de grande coragem, rompantes de ambição e fortes sentimentos de ansiedade e anseio se manifestam em alguém ou em alguma atmosfera em particular.
Quando obscuridade, falta de asseio, embotamento, inércia e desânimo se sobressaem em um indivíduo ou ambiente, não há dúvidas de que o modo da escuridão está exercendo seu poder e manifestando sua predominância.
Compreender como estes três modos atuam radicalmente no cotidiano do indivíduo e aprender a lidar com eles são prerrogativas especiais dos seres humanos. Essa compreensão é tão importante que, quando o indivíduo identifica a influência dessa tríade de forças invisíveis em si mesmo, percebe claramente que sua atual personalidade não é seu Eu verdadeiro, mas um mero produto da combinação dessa tríade. Então, através da auto-observação, ele pode começar a tentar assumir as rédeas de sua existência, marcando, assim, o início de sua jornada de autorrealização.
Chega um
momento em que a alma corporificada não se conforma com o papel de mero
figurante de sua própria vida. Ela aspira recuperar sua função de ator
principal, que é o que definitivamente lhe cabe. Para tal, ela terá que
“exorcizar” a personalidade mundana que por ora se apossa do seu corpo e, como
falsa protagonista, insiste em conduzir sua vida. Na verdade, a vitória final
da batalha entre a alma (o Eu superior) e o ego falso (o eu inferior) irá se
consolidar quando o indivíduo atingir a bondade
imaculada – uma condição extremamente rara e totalmente isenta da influência
dos três gunas (livre, inclusive, da bondade material)[1].
Mas, enquanto essa vitória completa não acontece, ele se vale da máxima de
“fazer um bom uso de um mau negócio”, pois entende que, embora os guṇas tenham seus aspectos
indesejáveis, cada um deles pode ser útil quando bem utilizados. O que
significa isso?